Cinzas
Sinto, novamente, vontade de escrever, mas era outra no tempo em que minhas palavras me mataram, então não tenho porquê ter medo. Sobrou-me ainda, depois que morri, muita necessidade de dizer, embora não saiba exatamente o que. Não consigo mais consertar o mundo com palavras, como pensei que poderia um dia, embora possa, talvez, destruir; Sempre acreditei que destruição fosse uma bela forma de criação.
Então penso em todas as coisas que gostaria de destruir, como a bíblia de bolso que queimei com fósforos há muitos anos. Tento pensar em coisas que eu odeio, mas já faz tempo desde que passei ódio nas minhas feridas pela última vez. Na verdade, existe uma quebra de expectativa quando você queima uma bíblia sagrada: não há eclipse, nem solo de guitarra, só um fogueira tímida e, posteriormente, um pequeno montinho de cinzas. Em algum momento, é preciso simplesmente levantar e fazer outra coisa.
Um dia eu acordei e havia montinhos de cinzas por todo lado: cinzas que não significam nada se eu, a guardiã de sua identidade, esquecer o que elas foram no passado. Cinzas que o vento engole, cinzas que invadem o pulmão, as cinzas que eu conservo para lembrar daquilo que fiz questão de esquecer, que eu destruo e que me destroem. Não me interessa mais destruir coisas. Não quero destruir absolutamente nada, e nem ser destruída, de novo, indefinidamente. Talvez esteja cansada demais para viver neste incêndio. A minha amada destruição, de tanto destruir, se destituiu de significado.
Não me entenda mal, nada acaba de verdade, é a identidade que se perde, esse corpo deformado em pé nessas cinzas irreconhecíveis. A minha professora de biologia me disse, há muitos anos: "Quando se queima um ser vivo, a carne frequentemente derrete antes que se perca a consciência”. É, eu sei disso. Sei porque já se foi a carne, e ossos, e toda a carcaça do que eu era, e eu ainda me sinto bastante consciente. E talvez eu nem quisesse me destruir. Talvez eu só quisesse ser feliz.
Queimar salvou minha vida, acho, mas agora talvez eu precise fazer alguma coisa com ela. Para alguém que dedicou a vida à anular o significado das coisas, eu não quero ser as cinzas que eu fiz do meu passado, nem o fósforo que o arruinou, nem o incêndio silencioso que brilha quando fecho os olhos toda noite, impressão na minha retina. Eu só quero criar, conservar, ser, estar, permanecer, viver, tocar, sentir, existir, respirar essas malditas palavras enfumaçadas.
Estou, na verdade, um pouco exausta de ser visceral, poeta, etérea, incandescente. Não quero que minha palavras cortem como faca, ser grande como fogos de artifício, queimar como um gênio e morrer como corpo nu. Não quero ser uma flor venenosa ou uma ideia intangível, eu quero ser a pele que você pode tocar, e acariciar sem medo de enlouquecer. Eu não quero ser a porra do sol, eu quero que você aguente olhar pra mim por tempo suficiente e repare a pinta que tenho no peito, logo acima do coração.
Do contrário, de que diabo vale todo esse amor estúpido? Se eu não me reconheço mais, e você vira só um
amontoado
incógnito
de cinzas
?
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