Noite pra sempre





"Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem o do mal."
- Friedrich Nietzsche


     Olho no relógio de corda na mesa de cabeceira, e são 3 da madrugada. Perco o sono, sento na escrivaninha à meia luz do poste, com a intenção objetiva de escrever, sentimento que não sinto a meses se não de maneira difusa. A minha mão treme, e penso se as palavras sairão sequer legíveis. Quando encosto a caneta no papel, alguém bate na porta. Está tarde demais, ou cedo demais, então não respondo. A porta se abre com um rangido vagaroso, e eu vejo a silhueta familiar de um homem, que diz, embriagado:

    - Pensei que nunca mais fosse escrever.

    - Dessa vez é diferente. - Eu respondo. - Dessa vez não é pra você, pai.

    - Para quem mais seria? Sabe muito bem que só existem eu e você no mundo.

    - Isso não é verdade. O mundo é grande, e eu sou feliz agora, apesar de você.

    Ele quase parece magoado, e por trás da névoa da embriaguez, sinto que o atingi, e me arrependo, mas aí ele sorri com uma espécie de divertimento torpe.

    - Não vai conseguir escrever sem luz, sua tola.

    Olho no relógio novamente e respiro fundo. Estou infinitamente cansada.

    - O sol já vai nascer, daqui a meia hora. O céu até está clareando, não vê?

    - É mentira! Será noite pra todo o sempre.

    - Isso não é verdade pai, você sabe disso. Está bêbado, e diz loucuras. Vá dormir e me deixe escrever. Vou escrever sobre coisas bonitas, dias que estão por vir. Muito me dói que o senhor não os verá.

    O cheiro que ele exala, de descaso e miséria, é forte demais e preenche o cômodo escuro e frio, então tenho que constantemente me lembrar que ele não está ali. Faz muito tempo que não o vejo de verdade. O homem no batente é só uma fantasia ridícula, uma voz que me atormenta a cabeça, e as vezes se faz visual. Uma lembrança, que está assustada, porque está morrendo. Sei que quando pousar a caneta no papel, quando começar a escrever qualquer outra coisa em vez dele, ele vai sumir. E então, quando o primeiro raio de sol surgir no horizonte, ele terá ido pra sempre.

    - Eu sei porque você está aqui, pai. Sabe que eu sou a coisa mais bonita que você já vez, sou a única pessoa que lembra de você como você gostaria de ser lembrado. Mas essa lembrança é nociva pra mim. Vá embora, você precisa descansar.

    São 4 e meia, E o céu está azul, não mais tão escuro. O homem no batente está desesperado e ficando sem tempo. Olho pra ele, magro, pálido, calvo, um arremedo do que um dia foi, e vejo que o mantive vivo por tempo demais na jaula da minha compreensão. Era o único jeito de mantê-lo por perto, mesmo que ele tenha destoado cada vez mais do resto. Até que não houvesse espaço. Senti pena.  

    - Vai ser noite pra sempre! - Ele brada, rindo.

    Eu sinto raiva, mas não quero me despedir dele assim. Eu digo, calma:

    - Adeus.

    - Mas vai ser noite pra sempre, não vai? - Diz, sem muita certeza.

    - Não pai, não vai.

    Então, ele percebe. Ele muda. Ele treme. Então, ele chora. Desaba, e protesta:

    - Vai ser noite... pra sempre....

    Eu vacilo. Caminho em direção a ele e o envolvo em um abraço, mas o sol desponta na janela e, subitamente, estou abraçando o nada. Choro uma única lágrima, que seca antes de rolar. 

    Então eu volto à mesa, e começo a escrever.



Sub-versiva, 1 de setembro de 2025

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