Carta Póstuma da Depravação






"Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nessa casa onde o horror, o horror profundo,
Tem seus lares triunfais.
Dize-me, existe acaso um bálsamo no mundo?
E o corvo disse: Nunca mais."

Edgar Allan Poe, de "O Corvo".


"Um dia estava especialmente deprimida, sentei na cama e apaguei a luz, pois queria ficar sozinha. Minha sombra não sumiu. Ela se levantou calmamente e disse:
 não adianta apagar a luz, eu fico ainda maior no escuro."



Querido, 

   Já faz um ano, eu me lembro, todos largavam seus leves corpos adolescentes no gramado debaixo da árvore. Falavam sobre histórias de amores, arrependimentos e cores. Eu olhava pra longe e aspirava meu cigarro, a fumaça me invadia como a água invade um navio afundando. E eu afundava também. O sol de punha devagar, e a minha sombra, imitando distorcidamente meu contorno, se alongava cada vez mais. Quando eu pensei ver ela se mexer, julguei ser fruto da mudança de luz. Até que, sem que eu mexesse um músculo, ela ergueu o braço e me pediu silêncio. Pensei vê-la rir. Pensei ver lágrimas escorrendo pela silhueta do seu rosto. E, sem que eu pensasse em nada de ruim, senti que ela pensava em morte. Que achava que aquilo tudo era uma piada, e que a vida era uma grande anedota de mal gosto. Sem que eu mexesse um dedo, ela se sentou, de pernas cruzadas, e apontou a mão em forma de arma pra própria cabeça. Senti seu sorriso, mesmo que, estando eu de costas para o poente, não pudesse enxergar de suas feições. Tive medo de estar enlouquecendo. Por fim, foi minha vez de pedir silêncio pra ela. Naquele mesmo dia, cheguei em casa, fui para o quarto e apaguei a luz. E a minha sombra sumiu. E ai eu soube. Se ficasse no escuro, nada refletiria a minha verdadeira silhueta. Eu não precisava ter medo de que as pessoas vissem meu lado escuro.

   Já fazem então 11 meses. Eu só saía de noite, e andava longe da luz. No meio dos meus amigos, eu sentava nos cantos. Quando via ela sair de trás de mim, e se jogar pela janela ou na frente de um carro, eu apenas sorria e fingia não ver. Quando me perguntavam porque eu ficava olhando pra longe, eu dizia estar cansada. Eu ainda achava que um dia ela ia voltar a refletir quem sou eu de verdade. Ou talvez um dia eu passasse a refletir quem ela é. Talvez isso fosse só coisa da minha cabeça;

   E então já fazem 9 meses que eu parei de te ver. Você era tão importante pra mim, mas meu segredo não sumia, e ele era tão perturbador que eu andava paranoica de que, amor, você que sempre me aceitou, pudesse merecer pessoas quem não escondessem nada de bizarro. Pessoas sem sombras. Eu me afastei porque tinha medo de um dia ser o que parte de mim refletia já na época. Além disso, ninguém gosta de pessoas que só andam no escuro.

  E então, há quatro meses, eu estava em casa. As cortinas fechadas. A TV desligada. Qualquer barulho era a música que eu usava pra esquecer a triste situação em que me encontrava, há dias eu não falava em voz alta. Só saía tarde da noite pra comprar comida. Eu não suportava aquela visão medonha daquele algo deformado que me seguia pra todos os lados, então tudo que eu pudesse fazer pra afastá-lo, eu fazia. Parei de sair, e parei de estudar. O dinheiro que minha família mandava de longe me era suficiente. Tudo que precisava era de comida. E mesmo, em tal situação, eu mal comia. Me alimentar parecia alimentar também aquele monstro. E mesmo no escuro, ele parecia me espreitar com seus olhos inexistentes.

   E então, já faz um mês eu acendi uma vela dentro de casa. Talvez olhar pra ele fosse melhor do que evita-lo. Eu passava o dia inteiro o encarando. A esse ponto, tudo que eu comia ou bebia eram migalhas e gotas. Eu tinha a vaga consciência de parecer um esqueleto, magro como um cachorro de rua, e branco como cadáver. Não me importava mais com o que as pessoas pensavam de mim, eu e a minha sombra éramos autossuficientes, não precisávamos de ninguém. Afinal, ninguém é capaz de entender ninguém tanto quanto um reflexo entende seu dono. Eu alcançava até certo prazer naqueles dias mal iluminados e melancólicos, eu e aquela figura insana, que vez ou outra me representava em posição fetal, um com uma garrafa de bebida, ou com uma seringa ainda largada no braço, mas o mais frequente, apenas um cadáver imóvel.

   Um dia desses estava especialmente deprimida, sentei na cama e apaguei a luz, pois queria ficar sozinha. Minha sombra não sumiu, ela se levantou calmamente e disse: Não adianta apagar a luz, eu fico ainda maior no escuro.

   Eu estou escrevendo isso porque precisava que você soubesse. Faz tempo que não durmo. Há algum tempo, não sei quanto, umas horas, levantei da cama e me aproximei dela. Abracei-a. Ao contrário do que pensei, aquela altura já podia senti-la palpável, fria ao toque. Corri os dedos pela sua superfície, idêntica a minha, e com cuidado, acendi uma vela. Ela se iluminou, e pude ver agora não um contorno escuro, mas diante a mim, um duplo exatamente igual. As olheiras, os olhos inchados, as costelas aparentes, os lábios rachados com resquício de sangue (sinto que andei arrancado pedaços da minha própria gengiva), o olhar marejado e exausto, e a vontade gritante de morte.

   Enquanto escrevo-lhe, meu duplo está sentado ao meu lado, me observando em silêncio. Quando acabar esta carta, acho que irei com ele a qualquer lugar me leve. Senti que ao menos devia dizer para alguém que o que tinha me acontecido foi minha culpa, apenas. Hoje, sou finalmente, a versão mais odiosa e verdadeira de mim.


De uma velha amiga.


Sub-versiva, 8 de março de 2020

Comentários

  1. Aterrorizante e paranoico essa ideia de ter uma sombra acompanhando. Essa coisa dela aumentar, e não sumir, quando apaga a luz também é legal.

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  2. talvez só a minha sobra tenha sobrado, tomado conta de mim. eu me apeguei a esse inferno cotidiano pela pura prática da meritocracia errática.

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