Um Relato na Calçada
"O sentido da vida é que ela termina."
~ Franz Kafka
"A fumaça. Ela saia por meu focinho preto suado, e eu a admirava,
ao se dissolver no ambiente fechado.
Como os sonhos: belos, efêmeros, nunca vão longe e,
de vez em quando, te dão câncer."
Olhos nos olhos.
No espelho do banheiro do pub, sujo e manchado, eu olhava meus olhos de um
amarelo doentio, profundos, verdadeiramente perturbadores. Saliva escorria pela
gengiva escura, gengiva de fera, própria de quem caça na escuridão. Meus pelos,
acinzentados, caiam na pia também amarelada e fétida. Mudança de pelos, a quem
isso deveria enganar? Era a dor, era o estresse. Minhas orelhas, aguçadas,
ignoravam o barulho do bar em si, com seus indivíduos embriagados, e focavam
apenas em frente, na minha figura magra e patética, intimidadora. Uma grande
cabeça de lobo cinzento, sustentada por um corpo de um jovem de 20, a minha
idade.
Saí, subi as escadas de madeira que
rangiam com as passadas com meu coturno velho e marcado, e pedi uma dose. Paguei
no cartão do pub no qual eu sempre tinha bastante crédito, tratava de depositar
certa quantia toda semana. Sempre passava minhas madrugadas de desgosto naquela
perdição.
Jô, o barman, abreviação de Joseph, me
serviu um dose de uísque, puro. Nem sabia se era irlandês ou americano, muito
menos a marca. Era algo que pudesse aquecer minha garganta. Era algo do qual eu
pudesse me arrepender depois. Achei digno, acendi um velho Malboro que eu
guardava há dias no bolso, filho único. Ninguém se importou, era pouca a gente,
e nenhuma sequer tinha sentidos suficientemente conservados para notar a
fumaça.
A fumaça. Ela saia por meu focinho
preto suado, e eu a admirava ao se dissolver no ambiente fechado. Como os
sonhos: belos, efêmeros, nunca vão longe e, de vez em quando, te dão câncer. Ao
estender a língua rosada para beber o álcool no copo baixo, meus caninos
esmaltados e imundos batiam e tiniam com o vidro gelado. Todas essas
observações e notas mentais, eu reparava, no silencio - é característica minha
ser soturno e observador.
Tendo esvaziado o copo em algumas
lambidas, e findado o cigarro em quase uma única tragada, vesti a jaqueta de
couro, toda rasgada, e invadi a noite. Agitada, mesmo no meio da madrugada, com
um ar apocalíptico, todos os transeuntes de certo modo cumprindo o papel de
violinistas do navio que afunda. A visão em desfoque, meu passo há muito já não
era de todo reto. O apartamento de um único quarto que eu ocupava, um brinde a
isso, era muito próximo.
Quando abri a porta velha, não sem
antes errar três ou mais vezes a chave, me joguei na cama de barriga pra cima,
olhos no céu noturno. Não havia estrelas, havia poluição, mas eu as imaginava
com quase perfeição. Sempre fui assim, imaginativo. Meus músculos da face,
cansados, face de lobo; Com a mão branca de dedos alongados, feito pianista,
acariciava meus bigodes brancos.
Me levantei e na geladeira, que quase
nem esfriava nem acendia, apanhei um copo que derramei no rosto. Sacudi a água,
gelada, mania da qual sempre me arrependia, e lamentei ao pegar o pano e
enxugar a mesinha molhada. Dentro da geladeira, apanhei também um pedaço de
filé, vermelho de sangue, do qual arranquei sem dó um rasgo, e engoli quase que
sem pensar. Carne sempre me acalmava, ao mesmo tempo fazia-me pulsar mais
forte. Quando criança, sempre gostei mais de carne, preparada por meus pais
cada vez mais mal-passada, mal-passada, finalmente ao ponto de crua. Eles, por
sua parte, faziam o possível pra me agradar e estimular em silêncio, e foi
assim que aprendi a me portar. Comer carne e olhar para o céu era o que me
diferia, além da aberrante aparência canina, e nada mais;
Não tinha onde cair morto. Prestes a
ser demitido do escritório, atrasava três meses o aluguel. Não tinha culhões
suficientes para escrever, que era o que faria, caso pudesse. Um ou dois
escritos jaziam rasgados debaixo da cama. Sonhos. Fumaça. Preferia mais era
fumar. Mas que se foda. Me permiti chorar, por fim. Era a terceira vez no dia,
por motivo algum. A vida, o rosto, a bebida, o cigarro. Irremediavelmente,
nunca saberia o que era viver por dentro da cabeça de um deles. Um olhar mais
humano, um ver, um ouvir, um pensar. Havia mesmo tal diferença? Pensei, pensei,
e saí de novo na noite. Raramente dormia.
Andando pela rua
suja, aqui a li, de guimbas e papel amassado. Entrei numa farmácia. Quando o
funcionário me deu boa noite, experimentei rosnar.
- Mas o que é
isso senhor, por Deus?!
- Nada, achei
que a sensação seria outra. Quanto paracetamol
é preciso pra matar um cavalo?
- Cavalo não
toma comprimido senhor. Mas depende. Na dúvida, leva dez.
Comprei foi onze.
Na calçada mesmo,
sem nada, tomei as onze caixas. O processo deve ter levado algum tempo, não
sei, me permiti divagar por uma última vez. Queria, antes de morrer, ver o
mundo d’um outro jeito. Quando vi, um homem sentou do meu lado. Era velho,
talvez vivesse na rua, quem era eu, um moribundo a impor padrões estéticos.
- Então quer
dizer que o senhor está morrendo? – Perguntou casualmente, ele, que certamente
me vira engolir a torto e direito um tanto “assim” de remédio.
- Por de certo
de que sim, creio. – Respondi, depois de certo momento reflexivo de silencio. –
Como é que é ser humano?
Ele deve ter
achado gozada, a pergunta.
- Você está
perdido? – Indagou.
- É, acho que
sim.
- Então eu não
nada mais pra acrescentar.
...
- E foi isso que
ele disse, mais ou menos, antes de morrer, bem aqui, na calçada. Eu juro,
senhor, se soubesse que ele 'tava apagando de início, tinha chamado alguém, mas
quando ele contou, já era tarde. Falar a verdade, nem entendi muito bem. –
Disse a mulher com a criança no colo, que achou o homem com a cabeça de lobo um
pouco antes do amanhecer, ainda vivo, tudo enquanto estava indo comprar pão.
Ela disse isso, tudo atropelado, tudo junto, tudo misturado. Tanto que o
policial fez que sim e nem contestou. Apesar de achar a mulher louca, falando
de homem cachorro, deu de costas. Mandou jogar o corpo no canal. Humano era um
negócio, mas cachorro, morria todo dia.
me desespera saber q nunca vou poder ser outra pessoa além de mim
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