O assassinato





"Deus está morto."
- Nietzsche

"- Eu matei Deus."


A Simon foi dada uma escolha: a morte ou a inexistência.

De início ele não entendeu muito bem, então lhe foi ordenado que escolhesse com base no pouco que tinha entendido, e ele pensou: a morte consiste em um fim pra algo que já existiu, seja doloroso ou bom. A inexistência não é fim nem começo, não é nada, como se nunca houvesse sido, e é aí que mora a diferença. Por fim, decidiu-se então pela inexistência, afim de não ter de chorar por um final.

É preciso ser pontuado, Simon havia cometido um crime hediondo. Tanto que nenhum dos guardas ou executores, investigadores ou juízes ousavam andar por aí repetindo tal coisa. Simon fora encerrado em um cárcere horrendo por seis longos meses, mas finalmente foi dado fim a sua espera. A pena, é claro, foi a morte. No momento de ser executado, o evento todo fora interrompido por um estrangeiro, que falava numa língua diferente que Simon nunca ouvira antes. Pra ele foi traduzido: o homem trazia uma alternativa à sua pena de morte, que consistia em tornar-se cobaia de um importante experimento. E então fora feita a pergunta, e dada a devida resposta.

Simon foi logo retirado da presença daquela forca, e levado para se trocar. Vestira uma roupa simples, padrão, fornecida pela prisão. Diferente do seu alaranjado e sujo uniforme de presidiário, aquela era toda cinzenta e impecavelmente limpa. Antes que lhe houvesse tempo de proclamar todos os seus questionamentos, foi metido num carro e ninguém lhe dirigiu a palavra por umas tantas horas.

Simon pensara de início, que tomaria uma espécie de veneno do esquecimento, e lhe seria dada uma morte limpa e certeira. Agora, parecia um tolo ao supor tais coisas, pois nada lhe fora dado pra fazer suposições. E agora, estava metido em um carro estranho a caminho do desconhecido.  

De repente, o carro parou. A porta se abriu, e não deu muito tempo pra se ver nada, porque foi lhe atada uma venda aos olhos, e ele, que nem ousava lutar, foi conduzido por braços fortes durante um longo, longo tempo. Passeara por corredores, gramados e chão de vidro, até chegar numa sala, onde o fizeram sentar em uma cadeira de madeira e tiraram sua venda.

Simon se viu dentro de uma saleta branca com uma iluminação que lhe cegava, rememorando desconfortavelmente os hospitais dos quais se lembrava. Atrás de si, dois homens de terno com semblantes duros, que pareciam sua escolta. A sua frente, um velho vestido em um terno de veludo negro lhe sorria de maneira amistosa, atrás dos seus óculos de grau perfeitamente transparentes.

- Não entendo. – disse Simon, com grande sinceridade.
- Você escolheu a inexistência, a fim de evitar a morte. – Respondeu o homem de terno, como se isso fosse a resposta necessária.
- Pensei que não era assim muito diferente. Vou morrer?
- Isso cabe a você definir.
- Estou sendo ameaçado?
- Está sendo avisado com sinceridade. Não me cabe muitas explicações. Precisava eu de uma cobaia, e aí está o senhor, um homem que nada tem a perder. Já que lhe tirei da forca, tudo que lhe peço é cooperação.
- E o que tenho eu de fazer?
- Apenas reagir sinceramente a tudo que lhe for imposto.
E com isso, uma agulha furou lhe a garganta, e Simon apagou.

Quando acordou, e ex-prisioneiro estava deitado em uma maca. Tudo era excessivamente branco, roupa, lençóis, parede. Tudo, menos os fios e agulhas que lhe espetavam em diversas partes do corpo, segundo observava ainda deitado, olhando por sobre o próprio rosto, para baixo. Tentou se erguer, e foi com grande desespero e desconforto que o homem percebeu não sentir mais seu próprio corpo. Aflito, fazia de tudo, mas não se mexeu um centímetro. Compreendeu, de súbito. Era criminoso, mas não era burro.

Então era isso que era não existir? Besteira, ainda possuía sua consciência, seus outros sentidos. Não podiam o manter imobilizado pra sempre. Então percebeu: provavelmente algum daqueles cabos lhe alimentariam e lhe dariam de beber, de modo que não precisasse usar suas forças. Com grande agonia, tentava manter a calma, mas tudo o que fazia era amaldiçoar a sua escolha. Podia ter uma morte limpa, rápida, até mesmo sem sangue derramado; No entanto, escolhera fazer parte da experiência de um sádico, e agora estava perdido, sofrendo uma espécie de tortura que até então nem acreditava ser possível.

Foi percebendo, ao longo do tempo, pequenos detalhes que eram, para ele, como facadas.

O quarto não tinha janelas, e era abastecido pela luz pálida da lâmpada de teto o tempo inteiro, então não haveria modo de medir a passagem de tempo. E ainda: não sentia absolutamente nada, então era provável que estivesse mergulhado em suas fezes e mijo, embora nunca fosse saber ao certo. Só podendo olhar para o teto, se deu conta de que não sabia nem mesmo sua posição. Supunha que estava deitado, reto, mas agora era impossível distinguir; Poderiam até mesmo ter quebrado seus braços e pernas, para ter certeza de que permaneceria submisso. E se a ideia fosse ir lhe devolvendo a dor aos poucos? E se ele fosse mantido assim durante meses, anos? Do propósito da experiência, além de tortura profunda, ele nada sabia: era refém de tudo, frágil como uma barata encurralada, e o terror e o pânico o absorviam tal como um tapete absorve vinho tinto, para sempre.

Não saberia dizer quanto tempo havia se passado, se fora uma hora ou uma semana, mas a pior coisa lhe aconteceu: apagaram-se as luzes. Antes, tinha pelo menos um vislumbre de sua situação, e agora não tinha nada. Seus outros sentidos de nada lhe serviam: não havia som para se ouvir, nem cheiro para sentir, nem gosto para seu paladar. Como um golpe fatal, nem sequer sentiu as lágrimas a escorrem pela face.

Recordou-se então do que lhe fora dito, sobre se morreria ou viveria: “Isso cabe a você definir”. Fora reduzido a nada, menos que nada, algo deformado no escuro, vagando a esmo, vivendo por um fio. Agarrando-se inutilmente a uma consciência que se dissolvia como gelo no calor. O grito morreu na sua garganta, assim como ele morria encerrado dentro de si mesmo.

Tentava, no maior desespero do mundo, lembrar de uma música que outrora gostara bastante, mas já tinha se esquecido de suas notas. Lembrava apenas que tinha alguma coisa a ver com a palavra “Adeus”. E então se esqueceu e deixou pra trás todas as suas memórias.

...

O velho usava um terno ainda mais caro do que o anterior, e ainda mais preto. Sua cabeça calva era adornada por uma cartola. Entrou silencioso no quarto escuro como breu, depois de um mês que a experiência já se iniciara. Com uma lanterna, lançou um feixe de luz na escuridão, e apontou para o rosto do homem.

Sua face estava imóvel, mais seus olhos pareceram de contorcer na mais horrenda expressão de dor que ele jamais vira. A luz foi acessa, e os empregados entraram. Do corpo do que fora Simon restava apenas um quase-cadáver descarnado, que contornava o esqueleto. Ele pareceria morto, se não fosse o olhar. Os olhos olhavam pra cima, mas o velho quase conseguia vislumbrar algo neles. Por trás da expressão mortalmente imóvel (nem as pupilas se moviam) ele via que ele estava vivo.

- Ele está morrendo, senhor. Mas ainda pode te ouvir. – disse uma jovem moça.
- Sei que está se perguntando qual o propósito. – Disse o velho, se dirigindo a moribundo. – Sempre quis saber o que tornava o humano, humano. Se por trás das sensações físicas havia mesmo uma consciência que sobreviveria a um certo grau de morte. Sou um cientista, meu jovem. Procurava o propósito da existência. E agora o sei: não tem nada ai dentro que sobreviveria, mesmo se lhe devolvêssemos todos os seus sentidos. Não há alma, você não é nada. Você é carne. Quando a tiramos de você, seus sentidos e memórias, você está tão morto como se tivesse ido para a forca. Que me diz disso?

Simon, nada disse. Morreu enquanto o velho falava. E ele disse:
- Eu matei Deus.



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