Três Palavras





"A violência faz-se passar sempre por uma contra violência,
 quer dizer, por uma resposta a violência alheia."
- Jean-Paul Sartre

"Saiba apenas que foi justo."


Eu era dona de um abrigo pra viajantes.

Estava sentada, no canto do pequeno estabelecimento de madeira na beira da estrada. Dentro, serviam café e chá fumegante a qualquer viajante que tivesse moeda suficiente. Havia álcool e cama para alguns, mas o mais comum era que tomassem alguma coisa e fossem embora, envoltos em suas peles grossas de ursos ou lobos. Ninguém queria parar muito naquele lugar inóspito que ficava abaixo do nível da estrada, sem nada por perto por quilômetros. Lá fora, a neve caia espessa.

Sentada longe da lareira, pois queria ficar afastada do movimento, pagava o preço de um vento frio incomodo que parecia se meter pela minha gola e descer pela minha espinha como um bloco de gelo nada bem vindo. Mas estava acostumada: geria o local desde que meu pai morrera, já há sete anos. Meu irmão mais novo tratava de servir bebida para todos, indo e voltando do balcão. O lugar onde eu estava não era sequer digno da luz do lampião que iluminava a saleta, e me cobria de sombras enquanto observava os inquilinos e transeuntes. Naquele dia, nenhum ia passar a noite, mas todos disputavam o pequeno espaço da sala comunal e esperavam a passar a tempestade de neve impiedosa.

Eu via a todos, mas ninguém me via, devido ao escuro. Cobria-me com meu manto de pele de texugo e bebericava tranquilamente do meu café adoçado com mel e especiarias. Apreciava bastante aquela vida, observar o ir e vir de pessoas diferentes. Tudo que tinha que fazer era manter os lucros pra subsistência e o suficiente pra renovar as mercadorias. A companhia de meu irmão me era agradável e eu nunca quis casar ou criar uma família. A vida na beira da estrada era mais do que suficiente para uma mulher de 37 com os meus gostos. O gosto de observar a magia e a tranquilidade da vida. Gosto pelo fogo que afasta o inverno.

Mal sabia eu que tinha meia hora de vida.

O estranho entrou pela porta, fazendo barulho do sino e chamando a atenção do meu atento irmão, que foi logo pegar a capa dele para pendurar e lhe oferecer mais um lugar ao tapete. Os bancos já tinha se esgotado. O estranho disse apressadamente o que parecia ser uma recusa, e eu o observei com curiosidade. Era esguio e branquelo, usava roupas de simples e botas duras de inverno e uma estranha expressão que a principio parecia desconforto. Quando lhe dei um segundo olhar, notei que era mais como um desespero auto controlado. Ele fazia de tudo para não fugir. “Por que?”, eu me perguntava, agora genuinamente interessada.

Ele parecia procurar por um rosto específico, até que foi se esbarrando por pessoas estressadas e alcançou uma mulher próxima a lareira, de uns vinte, vinte e cinco anos. Reparei bem nela, era ruiva de um tom claro bem alaranjado e vivo. Seus olhos eram de um verde musgo penetrante, e a boca ria um sorriso alegre, até ser chamada pelo moço muito pálido e estranho que chamara minha atenção anteriormente. A ruiva, envolta numa pele branca que parecia ser de algum animal albino especialmente peludo, ergueu o olhar e, a princípio, pareceu se esforçar para lembrar quem era o estranho, mas depois a compreensão veio de súbito ao seu rosto, e ela pareceu espantada, aterrorizada, verdadeiramente perturbada.

Eu, que assistia a tudo com grande atenção, me espantei junto quando o rosto dela ia ganhando mais desespero e o dele, cada vez mais pesar.

Foi então que ele se abaixou um pouco e sussurrou algo no ouvido da moça, não mais do que três palavras, mas o suficiente. Ela, de olhos arregalados, levantou-se, chamando atenção do pessoal que estava por perto, que agora também se interessava. Antes que ninguém pudesse impedir, ela tirou de baixo das peles brancas e volumosas uma grande metralhadora, pente cheio.

Um grito de abaixem-se nem se quer foi proferido, pois não houve tempo. Cobri-me ainda mais de sombras, na esperança que passasse despercebida, mas esse foi meu erro. Eu vi o massacre, do começo ao fim. O primeiro homem foi justo o mensageiro pálido, que foi acertado no nariz. Vi a cabeça implodir, o nariz se transformar num buraco hediondo e desfigurado, vi quase que em câmera lenta ele cair dobrado sobre si mesmo, num ângulo perturbador.

Pensei, talvez apenas pensei, ter ouvido a voz do meu irmão caçula pela ultima vez, mas os tiros e os gritos eram tantos que não havia mais certezas: todas elas foram afogadas em sangue. Eu prendia a respiração no canto banhado de sombras, mas o sangue que formara uma poça já chegava aos meus pés. Eu lutava para manter a calma, quando a ruiva se virou, como se já soubesse o tempo todo que eu estava ali, e olhou direto nos meus olhos.

O cômodo agora era banhado por um mortal silêncio, pois todas as vozes agora jaziam enterradas pra sempre em gargantas mortas, e a jovem ruiva assassina me olhava na alma, com lagrimas rolando de maneira desenfreada sobre seu rosto. Respirou fundo, e seus lábios se contorceram numa expressão de puro desamparo. Algo em mim queria matá-la, e a outra parte queria salva-la de si mesma.

Ela se aproximou andando, e mirou a arma para o meu rosto.

         - Espere! – Implorei. – Me deixe saber o porquê. Você parecia tão comum, como todas as outras. Quem era o homem? O que ele lhe disse?
         - Ninguém é comum. A inocência esta morta, porque todo inocente perde a inocência ou morre por tê-la em demasia. De qualquer modo, nem eu sabia que faria tal coisa meia hora mais cedo: bastaram três palavras e um olhar. E o homem.
         - Me diga. Deixe-me saber por que matou meu irmão e destruiu minha família. Esse estabelecimento é meu, eu te dei abrigo e bebida.
         Ela pareceu refletir por um momento.
         - Diga-me as palavras tais, eu lhe imploro. – Já não era eu, estava fora de mim.
        
         E ela disse:

         - Saiba apenas que foi justo.


Comentários

  1. Oi Nicole, conheço seus pais e, hoje, após muitos anos afastada do Espírito Santo, tive um imenso prazer, uma imensa alegria de me reencontrar sua mãe, que amo muito, por essas vias digitais... aliás, por essas vias, amizades se reconectam e isso é muito bom. Adorei conhecer seu blog, parabéns. O título do conto me fez lembrar uma canção do Caetano Veloso, Quero Ser Justo... só o título. Para ser justa, adorei seu texto! Siga esse caminho! Meu nome é Shirlene. Beijo.

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