Relato que não existe.
Quando eu era criança achava que os dias só passavam porque a
gente dormia, então eu tinha muito medo de não conseguir pegar no sono, porque
meu coração batia muito depressa, e ficar presa no tempo pra sempre. Então ficava chorando com a garganta travada no travesseiro, os olhos ardendo, e meu
deus, eu nunca iria conseguir dormir outra vez. E eu dormia. E os dias
avançavam e isso se repetia.
Os dias viraram anos e agora eu conto dezesseis. Tem vezes em que
eu estou numa sala cheia de gente e me sinto muito sozinha, fico distante de
tudo e a mesma vontade de chorar vem, e é como se eu estivesse perdida num labirinto
dentro de mim mesma e nunca, nunca mais fosse ver o sol outra vez. Agora eu sei
que os dias passam independentemente da gente, mas nada me tira a sensação de
que eu fico. O tempo passa e estou aqui parada. O sol não é pra todos, nunca
foi pra mim.
Os dias escorrem nos relógios de Dalí, mas eu sou o girassol que
Van Gogh jamais pintou. Nenhum dos 12 eternizados, mas o décimo terceiro. Aquele
que apodreceu em Arles e ficou naquele quarto, só. Eu sou pequena, poeira. O
rosto recortado da fotografia. Eu sou memória subjetiva na mente dos que me
experimentam, mas ninguém nunca me enxergou. Nem vai. Eu sou um quadro de
Magritte. Eu sou ninguém.
Eu tenho seis anos e estou no quarto escuro. São 23h e o amanhã
nunca chegou. Eu estou com medo. Mas não posso estar com medo porque eu não
existo. Estou obsoleta. Estou sozinha. Estou com frio. Não há sol. Nunca
haverá, nunca houve sol pra ela. Eu sou ela, agora. Dois pontos que são um.
Dois pontos que inexistem juntos. O que é a arvore não vista numa rua não percorrida
se não eu? Eu sou o filme tão perturbador que Lars Von Trier o não fez. Eu sou
a garotinha que Van Gogh não pintou. Eu sou o girassol que não conseguiu
dormir. Eu sou o relógio recortado e a foto que derreteu.
Eu sou
uma moça de costas em um fotografia antiga, entenda. Eu fiquei, o tempo passou,
e eu envelheci parada, agora morta. Tenho medo de ser o que já sou. Uma questão
jamais solucionada. Não só isso, uma piada. De mal gosto, torta, errada. Porque
eu ainda estou naquela cama. Você não entendeu esse texto, o sol não vai nascer
nesse jogo de drama, estou fadada. Porque a criança não lembrada era mais que
um pedaço da trama.
Era nada.
Sub-versiva, 4 de junho de 2021
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