klaus




Era uma vez uma criatura. Nascera do pranto e de flores mortas. Era isso: nascera do solo do cemitério. Onde só havia óbito e buquês de rosas amareladas e apodrecidas. Das lágrimas dos desgraçados derramadas sobre as lápides de concreto nascera o feto, que dentro de solo, germinava, como uma erva daninha. Se apropriando do adubo da carcaça de mortos santos e também dos desonrados, se desenvolvera sob o olhar das velhas esculturas mortuárias, anjos decaídos de arquitetura gótica. 

O lar da criatura era um cemitério simples e tradicional, muito antigo, que abrigava tanto grandes e rebuscados mausoléus, como apenas cruzes de madeira apodrecida. O coveiro não reparara, ou não dera a devida importância, mas bem no sopé da escultura barroca de um anjo de mármore negro, com véu e asas imensas, ouvi-se os gemidos do aborto do inferno, fruto da dor e do desespero. Apesar de ter nascido da terra, como uma planta, a aberração tinha a aparência, como se foi logo descobrir, de um canídeo.

Como que em um parto, chorando e envolto pela placenta e sangue rubro que beirava o negro, despontou da terra algo como um canino muito pequeno e úmido, que assustaria  qualquer um por sua aparência subdesenvolvida e grotesca. O organismo guinchava, como que desemparado. Sendo filho do luto do homem, de flores mortas, e talvez, abençoado por Lúcifer. 

Depois de tanto se contorcer e gritar, o bebê de Rosemary atraiu a atenção do coveiro, que ali passava a maior parte do tempo. Este, no entanto, tinha medo de se aproximar do inominável. Mas, quando a quimera finalmente se viu livre, ainda que frágil e embebida de sangue, pode se perceber que se assimilava a um mamífero de quatro patas, seu pelos negros colados na pele. A qualquer um que o visse, teria profundo asco, por isso o Coveiro se pôs distante.

Quando uma chuva torrencial se assolou sobre o terreno, os ganidos do ente que ali brotara cessaram. Parecia gostar de água, afinal, nascera do lamento humano. Depois de um semana, tomara forma completa: era um filhote de lobo. Todavia, tinha o pelo negro como carvão, sem que ao menos se refletisse luz nenhuma. Seus olhos eram carmim, como sangue. Os caninos, salientes e afiados. As orelhas, grande e peludas. O rabo, desmedido, arrastava se atras de si. A quem diga que fosse manchado permanentemente de rubro, como sangue coagulado, mas a cor era quase imperceptível contra seu breu. 

No princípio, era epena um filhote, mais os dias foram correndo, e rapidamente, em questão de semanas se tornou um fera colossal. Guardava o cemitério, como se fosse seu antro. O coveiro aprendeu a conviver com ela, a criatura, evitando-a, e até razoavelmente satisfeito, por que o ar denso do cemitério havia amainado. A besta parecia se alimentar de dor e desespero, pois não era possível encontrá-lo comendo coisa alguma. Aos visitantes do cemitério, a criatura observava, sem fazer nenhum mal. Gostava do escuro, e principalmente, depois que as visitas se fossem, gostava de deitar perto dos buquês, e gostava da beleza mórbida o do sossego das lápides. 

A maioria achava a aparição incômoda, pois se acovardavam diante do monstro. No geral. a quimera era pacífica, ainda que fosse, aparentemente, cada dia mais um lobo colossal, chegando à um metro de altura, do ombro ao chão, e dois metros, do focinho a cauda. Era um animal jovem ainda, nascido de maneira sobrenatural. Suas garras afiadas nunca feriram um ser humano naquele cemitério, e poderia se até dizer que mantinha uma relação cordial com o coveiro, que lhe dava espaço, e por vezes "lobo" o ajudava a cavar as sepulturas.

...

Porém, não demorou muito, o coveiro foi se confessar com o padre da província. "Perdoa-me, Deus, pois pequei. Deixei que o anticristo se desenvolvesse e se apoderasse no meu lugar de trabalho. Ai! Tenha piedade, pois se não o expulsei, foi por medo.... foi por covardia minha que o deixei prosperar... ai de mim! Tive medo antes, mas agora vejo: o diabo encarnado vive no cemitério." 

Na cidade, correram rumores sobre o anticristo encarnado, uma besta descomunal que não cessava de crescer, com olhos demoníacos que levavam qualquer a perdição. Uma besta que se desenvolvera de carne apodrecida e lágrimas. O animal que deveria engolir o sol e causar o apocalipse. A destruição e o caos em forma física. Nada de bom poderia vir de algo tão grotesco e maligno. 

Esse rumor, que era até mesmo desacreditado pelos mais ajuizados, foi se espalhando entre os religiosos, a elite e os simplesmente covardes. Atribuíram o nascimento do mal pelos mortos indignos que ali jaziam: os assassinos, ou ladrões, os alcoólatras e ou suicidas. Logo formulou-se um plano para dar fim ao monstro. Um grupo de covardes (pois são os covardes os mais perigosos) entrou furtivamente no cemitério, com a ajuda do próprio coveiro, que não aguentava mais viver na sombra do lobo e travar relações com o anticristo (porque a muito a culpa por ter se aproximado daquela criatura diabólica o atormentava, temendo assim não poder jamais entrar nos portões dos céus). Procurando redenção, foi que o coveiro, assustadíssimo e com as mão trêmulas, permitira a entrada da horda no cemitério, bem no primeiro raio de luz, quando a fera ressonava tranquila. 

Encontraram no sob o anjo negro, ao lado de rosas ainda vivas, que começavam a murchar. Apavorados, a turba insana envolveu-o, não sem grande esforço, para não acordar o bicho, e um saco, e o fecharam. Embeberam o saco de linho em querosene, e depois, botaram fogo, devolvendo a aberração de onde ela viera, as labaredas do tártaro. 

O lobo acordou se debatendo, uivando, estrebuchando, e na pressa de apagar o fogo, quebrara a pata dianteira, no desespero de romper o saco, fechado a corda. Rolava no chão, e vão, asfixiando do saco de pano resistente, que fora lacrado com competência. Permaneceu um bom tempo assim, agonizando e desnorteado, atordoado pela surpresa. Rasgou o saco, enfim, e rolava desesperado na lama, o  vulto de luz flamejante na aurora. A horda de assassinos, observava, automaticamente, por curiosidade, Porque era impossível qualquer animal sobreviver aquilo. Mas aquilo, fosse o que fosse, não era mesmo um animal.

O demônio em agonia, a pele rosa de carme queimada e os pelos do corpo carbonizados, sujo de lama e lodo, aos poucos se erguia, para a surpresa geral, debilitado, porém vivo. Mancava, quebrada a pata dianteira direita, e uma cicatriz horrível lhe abria a boca e deixava os dentes visíveis, a gengiva em carne viva. O olho direito, antes vermelho, estava meio derretido, baço. A orelha direta havia sido consumida até o toco. Essas marcas o acompanhariam pra sempre. Mas no corpo, começavam a crescer o pelos outras vez, em tufos, como se o bicho de recusasse a morrer, se reconstruindo. Porém, a marca mais profunda seria eterna: no rosto antes dócil, havia uma fúria assassina.   

Diante daquele horrendo espetáculos de carne ardente, pelos esparsos e o globo ocular derretido, grande parte dos presentes foi embora. Alguns mudaram até de cidade, e mesmo vinte anos depois, lembravam com exatidão o ocorrido: aparência física impossível de ossos, carne e pelo. 

Porém, restou diante do monstro, o padre. Que com a sua batina, não parava de rezar, tirando um crucifixo de madeira do bolso e o apontando, como se fosse possível exorcizar o bicho que não perecera nem pelo fogo ardente do expurgo. Não direi muito, apenas que a coisa, que parecia ter agora 2 metros de altura, em vez de um, pulou encima no padre e, com uma grotesca mordida da boca fraturada, arrancou a pele do rosto no padre, que se desprendeu como uma máscara, e a cuspiu fora, como se fosse nada. 

O padre, ainda vivo, reduzido a uma massa disforme de carne, pediu misericórdia não a deus, mais ao diabo, que enviara a terra aquela aberração. Essa aberração, por sua vez, sentiu prazer em transformar o antigo padre em uma pilha de carne e sofrimento, sem comê-la, pois não era de sua índole, e até a dor daquele padre tinha algo de desagradável e podre. Esperou pelo decorrer da manhã, para que os abutres viessem se alimentar. 

O Coveiro, que vira tudo pela janela da seu casebre, onde se refugiara no início da tragédia, estava como que catatônico, incapaz de se mover, para não se atrever a despertar novamente a ira da besta. Mas sua agonia não durou: findado o espetáculo das aves carniceiras, o demônio se embrenhou na mata e foi embora, pra nunca mais voltar.

...

A história foi assim: o bicho, esquecido por deus e pelo diabo, vagou pela mata por muito tempo, até se regenerar como lhe foi possível. Seus pelos negros cresceram outra vez, e seu rabo imponente voltou a forma de outrora. Sua pata, porém, enrijecera como estava, moldando seu eterno andar manco. Seu rosto lupino, era metade uma bela exposição de pelos negros e olhar incandescente, e a outra metade, porém, era de pele rosada que jamais teria pelos outra vez, e ostentava um olho enevoado e inútil. Os caninos proeminente, ah, esses eram exibidos intactos em toda a sua glória.

Essa fábula deu-se no século XV, na derrocada da idade média. O filho do pranto aprendeu a nunca se deixar ver, pois tinha ódio dos homens e do seu orgulho e crueldade. Entretanto, se manteve por perto, à margem, se alimentando das dores e das desgraças, como que invisível. Era muito inteligente, e capaz de ir e vir sem ser notado. Era também muito sábio, pois além de se tratar de uma alma velha, aprendia um pouco com cada lágrima de que se alimentava. Farejava a agonia como um lobo normal fareja o sangue, e nas sombras: lá estava ele, absorvendo a melancolia do ambiente.

Em grandes catástrofes, ou em tragédia horríveis, era possível ver nos cantos, um olho rubro, e outro, cego. Mas no geral, passava como um fantasma, um ente solitário, deformado e amargurado. Assim foi por 600 anos.

...

Agora narrarei uma experiência pessoal: no pior dia da minha vida, escrevia com tinta no meu caderno. As sombras furtivas projetadas pela luminária do meu quarto se contorciam no meu campo de visão, mas fazia o possível pra não lhes dar importância. Vozes clamavam meu nome mas eu sabia que não era real. Lagrimas corriam pela minha face sem que lhes desse importância. Febril, eu anotava com violência: "Todos me abandonaram, porque não valho a pena. Não sou extraordinária pela minha dor, sou só uma medíocre em agonia. Ela se foi. Se foi e não vai voltar. Todos se foram. Não tenho carta de suicídio para quem endereçar. Se eu nunca tivesse existido, todos-". 

E foi então que o vi. Os olhos ímpares na escuridão. "Não é real. E como todas as outras coisas, não existe fora da minha cabeça.", eu dizia. Fechei o olhos, controlei minha respiração, e prometi a mim que  quando olhasse, os olhos, um rubro e o outro esbranquiçado, teriam sumido. 

Não sumiram. 

"Você é real?"

Silêncio.

"Saia das sombras."

Silêncio. 

"Escute: não vou viver muito. E você não é real. Ordeno que saia das sombras."

...

A figura, timidamente se revelou, pela primeira vez desde que desaparecera da vista dos homens, na tênue luz amarelada da minha lamparina. Era bem maior do que eu imaginara à princípio. Era como um lobo negro, só que três vezes maior, e com um lado da face queimada, um olho cego, e um cotoco no lugar da orelha direita. Não se mostrava agressivo: na verdade tinha uma expressão autêntica de desconfiança, como que não fosse dado a amizades, e ainda quase embaraçado sob o meu olhar analítico.

Eu disse a ele: "Você é a alucinação mais linda que eu já tive."

 Era verdade: o animal era enorme, suntuoso, com o pelo negro opaco e macio. Seu único olho bom, o vermelho, era de um escarlate reluzente, com algo de inteligente e curioso. Sobre a face queimada, a primeira impressão que tive foi de um espírito velho, machucado, mais muitíssimo sábio. Até o momento, em que o compreendia certamente como um delírio, não pude pensar se não no reflexo de mim mesma. 

Arisco, o lobo, que agora que se deixara ver ocupava quase todo o meu diminuto quarto, refletia se era sábio ou não se aproximar. Entortava a cabeça, como em dúvida, como os cachorros grandes, quando filhotes. Seria cômico, se não se tratasse de uma presença tão aterradora. Eu chorava, porque de repente eu via todo o medo e insegurança do lobo, como se fossem os meus próprios. Eu olhava para os meus braços trêmulos, eu olhava pras cicatrizes, olhava pras manchas de tinta em mim e no caderno, nas palavras perturbadoras que eu escrevera. Acendi, tremendo, um cigarro. Chorei, porque estava com medo, com dor, e infinitamente só. 

Foi então que a figura que eu tomava por um delírio, se aproximou e encostou o focinho gelado no meu braço. O lobo, sem aviso, esticou a língua morna e, juro, lambeu minhas cicatrizes. E eu, pegando a minha sanidade e jogando fora, trêmula de adrenalina, toquei sua face queimada e lhe fiz carinho.

"Vou te chamar de Klaus. Significa vitorioso. Parece que você já venceu muita coisa."

Em resposta, Klaus botou a cabeçorra peluda e pesada no meu colo. E, digo-lhes em verdade, no mento em que ele me demonstrou esse sinal de confiança, pode ver, como que eu visão, toda essa história, a história da vida de Klaus, como uma visão, uma certeza em minha mente, sem que Klaus, sendo ele um canídeo, precisasse dizer uma palavra. Fui tomada de compaixão pela besta sofredora, e nessa posição, eu dormi.

...

Quando acordei no dia seguinte, Klaus não estava mais lá. Passaram se semanas, sem que ele aparecesse. Tomei-o por uma alucinação: não seria a primeira nem a última. Inferi que toda a biografia do monstro que eu havia tido acesso não fora, senão, um sonho febril. Relatei o ocorrido para minha psiquiatra, e intensificaram-se os antipsicóticos. Os dias continuaram iguais, lentos e dolorosos. Quando eu fitava as sombras a procura de Klaus, a minha alucinação mais bonita, ele não estava lá. 

Estava resoluta de que Klaus não fora se não, um fruto da minha doença. Aceitava isso resignadamente. Entretanto, muito me perturba ainda o fato de Klaus ter desaparecido depois da dosagem maior dos remédios. No fundo da minha mente, alimento a hipótese doentia de que Klaus seja real, e tenha se afastado porque não há em mim, a dor pungente que houvera outrora. Culpava-me por não estar triste o suficiente para merecer a presença de Klaus. Todos a quem contava minha dolorosa situação, diziam que eu estava me sabotando, nunca houvera lobo algum.

Mas de noite, quando fechava os olhos, podia lembrar perfeitamente dos seus olhos dispares.

Comecei a escrever sobre ele. Desenhá-lo, as vezes sem perceber, em folhas avulsas. Colava-as no meu quarto na esperança de atraí-lo: o demônio lobo que gostava de dor. A duvida permanente de sua existência ou minha completa insanidade me atormentavam até os ossos.

Escrevo isso para contar que hoje é o meu décimo quinto dia sem remédios, e eu não sei o que pode acontecer. Minha irmã, a unica família que me resta, me liga sem parar. Mas não atenderei: é preciso a dor profunda para chamar Klaus. Minha psiquiatra se desespera: mas não adianta. Estou trancada em casa e assim ficarei. As vozes já batem na minha porta, e os vultos se aglutinam a minha volta. Eu sei, logo o lobo aparecerá. Estou imensamente triste, mas pelo menos o verei outra vez. Na penumbra do meu quarto, o aguardo nas sombras: seu olhar manso e sua sede se dor.

Ah, meu querido Klaus, tenho muita dor pra você.

(Nota: o presente documento foi encontrado pelo IML, ao lado no corpo da vítima, uma jovem de 22 anos, que constava como desaparecida a  três semanas, e foi localizada num apartamento alugado. Seu corpo foi encontrado já em avançado estado de decomposição, o os sinais indicam morte por choque circulatório advindo da dor pelas queimaduras de terceiro grau. A principal hipótese é que a vítima, que tinha sintomas psicóticos em estado já avançado, tenha umedecido o lado direito do próprio rosto com álcool, e acendido com um isqueiro também encontrado no local. Os principais indícios dessa versão constam no documento em anexo, um breve diário, ou então, ao que parece, uma extensa e complexa carta suicídio.)

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