Reflexo



"Nunca me senti só. 
Sou a melhor forma de entretenimento
 que posso encontrar."
Bukowski

"Sinto-me assolada pela esmagadora compreensão
 de que nunca serei ninguém, se não eu mesma. 
A presença do meu ser pesa sobre os meus ombros, 
e o reflexo no espelho causa estranhamento."


Acordei e me levantei. Bati a poeira, esfreguei o rosto, procurei então algo que me lembrasse de quem era e onde estava. Estranho: me vi cercada de vazio em todas as direções, vácuo negro e abstrato, imersa em desconcertante breu. Bem, exceto a minha frente, onde se encontrava um espelho em forma de v, como um quina, um beco. Nele, em vez de uma única imagem deformada, vi dois reflexos, um em cada metade, do que parecia ser eu. Sabia que eram reflexos porque ambos imitavam-me conforme meus movimentos. Entretanto, ainda mais curioso: os reflexos não eram iguais entre si.

Em ambos, uma garota nua, alta e magra, com a cabeça raspada. Pareceriam idênticos a um olhar leviano, mas com um pouco de atenção via-se que o reflexo da direita esboçava um leve enrugar de pálpebras, como um princípio de sorriso e jovialidade. O da esquerda, por oposição, pendia os lábios levemente pra baixo, com desânimo, desgosto. E o mais estranho: eu não sabia qual deles correspondia a mim, porque a diferença era muito sutil. E sabia que as imagens eram minhas porque eu mesma, ao a olhar pra baixo, constatei ser esguia e estar nua, pude sentir meus cabelos baixos, quase calvos. Mas não podia identificar se meu próprio rosto demonstrava paz ou insolência.

Tentei consultar a mim mesma e só encontrei mais do vazio que me cercava. Olhava de um extremo ao outro, pensando se aquele esboço de sorriso de um lado, e a expressão fatigada do outro seriam apenas loucura minha. Como poderia saber? Como poderia não saber?

Com raiva, esmurrei o espelho, duro e frio, que não se partiu por inteiro, mas rachou, relevando um ainda terceiro reflexo: quase a mesma coisa, mas, a irritante e mínima variação de expressão, não era dor ou alegria, em sim desprezo, ironia e escarnio. Quase como se não levasse nada a sério: era a ofensa. A ira, o nojo, a defensiva. Isso tudo se mostrava condensadamente em sobrancelhas minimamente arqueadas, indolentes.

Meus três reflexos me encaravam tal como eu a eles: o triste, e feliz, e o indiferente.

Senti que nenhum deles dizia respeito a mim completamente, pois eu mesma não me sentia triste, feliz, ou indiferente. Me sentia quebrada, oscilante, sobreposta, confusa, agoniada, envergonhada e julgada por três de mim ao mesmo tempo. O reflexo a direita parecia tentar me dizer que não era para tanto, complacente. O reflexo da esquerda pedia socorro silenciosamente, enquanto o de cima zombava de mim como se eu fosse a piada do ano.

Olhei para baixo e minhas mãos tremiam descontroladamente, vermelhas pela soco que eu desferira no espelho. A medida que eu parecia encolher, o vidro partido, junto com suas miragens, aumentava ao meu redor e me envolvia um uma luz fantasmagórica de reflexos. Quando as imagens distorcidas, feias e discordantes tinham mais de 2 metros e eu parecia um noz, o espelho de partiu ainda uma outra vez. 

Quatro imagens foram adicionadas em quatro cacos partidos. Em um deles, uma versão promíscua de mim tinha um olhar lascivo e um sorriso torpe. No seguinte, eu olhava com asco tudo ao meu redor, e podia até se ver uma palidez de náusea. Em outro, eu chorava copiosamente sem mover um músculo, com lagrimas amargas e desesperadas rolando pela minha face. No quarto, um reflexo em agonia olhava para os demais com o canto dos olhos, como que com medo: a definição de paranoia. 

Loucura! Era tudo insanidade: tudo era um absurdo excruciante e perturbador. O pandemônio do inferno subjetivo do caos subconsciente consumia a si próprio, e eu esperava pelo fraco vidro se partir em mil outras faces, e foi quando o espelho ruiu. Todos os cacos angulosos se desprenderam e caíram com um ruído bizarro. Todos os pedaços de vidro quebrado me encarando: melancólica, jovial, arrogante, psicótica, promíscua, enojada e desesperada. 

Apanhei o caco melancólico, não sem me cortar no processo, fazendo jorrar entre os meus dedos sangue rubro e pegajoso, sujando e aderindo ao espelho. A imagem de dor difusa diferia, por exemplo, do caco do desespero, que era pulsante, quase agressivo, e achei melhor mantê-los distantes. 

O caco alegre, por sua vez, parecia, mesmo ele, cansado e oprimido, mas firme. Experimentei juntá-lo com a figura psicótica, e com satisfação consegui um figura anestesiada, porém sonhadora, nostálgica, perdida, mas esperançosa. Selei-os com o sangue.

Uni a peça em que tomava forma em minhas mãos ao o caco lascivo, carnal, e obtive um eu contemplativo, porém impetuoso, presente. Frenética, em êxtase maniaco, somei o asco a equação e obtive, segundo meu calculo planejado, uma dose moderada de pudor e bom senso, equilibrados pela força reativa e impulsiva já obtida anteriormente. Tinha uma imagem quase completa, mas demasiado pequena e indefesa, e pra isso somei a arrogância, pois foi preciso.

Vendo que faltava apenas uma peça, sentia que eu não podia esquecê-la, deixá-la de fora, sabia que se a negligenciasse, haveria uma falta perene, um buraco podre em meu âmago. Então sangrando, em lágrimas, revoltada, porém firme, somei o desespero a imagem. 

Formaram finalmente um único ser, que era belo e completo, não sem um brilho maligno e dolorido no olhar.

Me afastei e contemplei o que não era mais um espelho oval que mostrava diferentes reflexos, e sim um vidro deformado, mas com uma forma unificada. Um ser poderoso, costurado, estranho, complexo, sobreposto, bizarro, sim, mas restaurado.

Contemplei a besta de vidro e sangue e constatei: era eu. Sorri debilmente um sorriso ambíguo.

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