Eu me lembro.


 Tento lembrar da primeira vez que minha sombra se levantou contra mim, e não consigo.

Lembro de quando eu era criança, se é que algum dia fui criança. Lembro da sensação de casca da árvore sob minhas mãos e pés, do musgo que crescia depois da chuva e tornava a escalada difícil. Lembro de cheirar o aroma agridoce da minha cadela suja de terra, lembro da essência da grama cortada, verde de verão. Antes de ter idade pra me por sobre meus próprios pés, lembro de passear no colo dos meus pais, e sentir o cheiro de sal e areia  , maresia. Lembro da sensação da lã das minhas meias coloridas, das cobertas pesadas no inverno. Lembro que sempre gostei da chuva, do mar, da água. Lembro que sempre quis um cachorro, e lembro de correr no quintal, de pés nus, quando finalmente ganhei o meu primeiro. Lembro do cheiro forte de uma flor branca que crescia perto de casa e estava constantemente florescendo. 

Lembro das brigas dos meus pais bem melhor do que lembro deles conversando calmamente. Lembro das tempestades de raios, e da sombra da enorme mangueira sobre o meu quarto, chacoalhando. Lembro dos grilos, e como a sinfonia deles me assustava de noite. Lembro da coleção de dez, vinte, vinte e cinco cascos de cerveja retornáveis consumidos em uma única noite. Lembro do vento cortante do entardecer contra a jaqueta velha do meu pai. Lembro de aprender que um bêbado quase nunca nota se você chorar em silêncio. 

Lembro de descobrir que as arvores sempre falam a verdade quando você as toca na casca, mas que alguns toques humanos são traiçoeiros. Que os cães olham você diretamente, e não são capazes de coisas que os homens são. Lembro de perceber que o sol sempre levanta e se põe todos os dias, mas outras coisas na vida não são tão constantes. Lembro que eu nunca estava só pois tinha a mim mesma, e isso era suficiente, até não ser. 

Então a minha sombra se ergueu.


Tento, em vão, lembrar da primeira vez que me feri intencionalmente.

 de quando eu era adolescente, se um dia me permiti ser. Lembro escutar minha musica preferida desesperadamente como se pudesse, de repente, ficar, surda. Lembro de calçar meus sapatos surrados e cadarço desfiado como se fosse uma armadura de guerra. Lembro da sensação da maquiagem escorrendo no meu rosto depois de um dia quente e cansativo. Lembro do vento no rosto quando eu cruzava a ponte de carro. Lembro de tentar acender uma vela na praia, pro aniversário de morte de algum herói drogado, mas lembro de não ter nenhum isqueiro e os palitos de fósforo serem insuficientes. Lembro da sensação de me olhar no espelho depois de ter raspado a cabeça pela primeira vez.

Lembro da sensação da fumaça do tabaco machucando a minha garganta e de ignorar o incômodo o máximo possível pra não soar idiota. Lembro de quando o meu apontador de lápis caiu no chão e se estilhaçou, e eu fiquei quebrada pra sempre. Lembro de achar que eu nunca morreria, nunca precisaria me alimentar ou dormir de novo. Lembro de dormir por tempo demais, achar que nunca seria forte o suficiente pra sair do quarto outra vez, de me olhar no espelho e não me encontrar, e ai então querer dormir outra vez, por muito tempo, quem sabe pra sempre. Lembro de escrever e apagar, desenhar e rasgar, comer e vomitar. 

Li uma vez num livro que automutilação também é sentir dor e não fazer nada a respeito. Então não me lembro quando começou. Antes da gilete, antes do cigarro, antes das pessoas erradas e antes das pessoas certas. Quando todos saíram do quarto, e ficamos só minha sombra e eu. Eu devia ter ido embora, mas não fui.

Eu não fiz nada para impedir. 

Agora já não sei onde termina o eu e começa a sombra. 

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