Ovelha em pele de lobo, em pele de homem.


"Don't be surprised, when a crack in the ice
Appears under your feet
You slip out of your depth and out of your mind
With your fear flowing out behind you
As you claw the thin ice"
~ The Thin ice - Pink Floyd

    Nós sempre caminhamos em gelo fino. Nosso telhado sempre foi de vidro, e os arbustos de rosas abrigavam espinhos; O pão estava queimado por fora e cru por dentro, e os vegetais frescos eram ninhos de larvas. Com você e eu, os desajustados, sempre havia algo de dúbio. Havia beleza, poesia, e arte, sim, mas, aninhado em nossos corações, envolto de miocárdio e sangue, havia algo definitivamente podre. 
    Eu herdei isso de você, que herdou de seu pai, que herdou dos que vieram antes dele. E o que acontece com uma criança que tem a loucura dormente no sangue? Essa criança ri, vive, respira, e sofre. A criança, vê todos que ama perecerem perante a força inexorável do caos, antes mesmo que ela saiba o que significa. Seus heróis morreram todos de overdose, e a pessoa que ela mais ama, aquela que lhe passou pelo sangue o gene maldito da insanidade, é a que mais padece. Então a criança promete salvar quantos doentes ela puder, promete proteger todos os insanos do mundo, até perceber que não pode salvar nem a si mesma, e aí já é tarde.
    Aí já é bem tarde.
    Não te odeio, de maneira alguma, por me atrair pra essa armadilha letal, que é estar vivo. Não te odeio por me encher de histórias fracassadas e anti-heróis problemáticos, e me fazer sonhar caminhos que eram na verdade becos. Não te odeio por falhar consigo mesmo, e por consequência, falhar comigo, e espero que também não de odeie quando eu falhar comigo mesma. A coisas foram ficando mais e mais complexas nesse labirinto de nós, mas se a gente se permitir sonhar, eu prometo dar o meu melhor, e espero que daí onde você está, possa fazer o mesmo.
     Um livro de que gosto muito disse: "Deixe um lobo vivo e as ovelhas nunca estarão seguras". Há coisas nessa vida que tem que ser exterminadas por completo, e no entanto, não podem. Porque eu conheço pessoas, pessoas grandes como você, que são capazes de abrigar um rebanho inteiro de ovelhas, e uma alcateia ainda mais numerosa de lobos. E por mais que a gente espante junto essas besta para bem longe, elas sempre vão existir, e no final, seremos vencidos pelo cansaço, porque a noite é deles, e não nossa.
    Eu só queria que você tivesse investido em cercas maiores, e educado melhor a suas ovelhas, porque todo mundo sabe a natureza dos lobos. Eu queria que você tivesse aprendido a nadar, se te apetece tanto o gelo fino. Queria que aprendesse a cuspir em vez de engolir, se tanto te atraem as frutas podres. Nós não somos os mocinhos, então não haja como se fossemos. Os lobos dentro de nós são imortais, então nunca dê as costas para eles depois do pôr do sol. 
    Não há binarismos, não existe paraíso. Você pode ter dado as costas aos lobos, mas eu os via nas sombras, todos esses anos, tanto os meus, como os seus. Agora eles estão por toda parte, e a batalha é injusta, ridícula, desesperada, vã; Eu arrumo as minha malas e deixo você, sozinho com seus monstros. As ovelhas estão todas mortas, e o que dói é pensar que isso não é luta, é massacre. Mas de todo modo, foi você que lhes deu as costas. Eu só espero que, contra as probabilidades, 

Você os afugente de novo.

(ou morra dando tudo de si)
    



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