O absurdo

    
"O Profundo" de Jackson Pollock, óleo sobre tela


"Me desculpa"
- Todo mundo, o tempo todo


    Querido, eu nunca amei ninguém como amo você. Pensando bem, talvez nunca tenha amado nada na vida. Ainda sim, adoro os monstros, delírios, visceralmente os insetos e todas as coisas podres, frágeis ou efêmeras. Sou amante do derradeiro, amar o concreto é outra coisa. Tem algo de assustador em montanhas, navios e grandes construções, meu mundo é feito de papelão, seda e cola de artesanato. Minha alma é tão trêmula que a honestidade da fraqueza me fascina mais que a possibilidade da solidez. Eu até pareço sólida pra você, mas eu prometo, é tudo questão de ângulo. Sou feita de arco íris, se você olhar direito, eu não existo.

    Como pode uma carne tão marcada, ainda tão jovem, viver dentro de um pesadelo e ainda sim, não saber nada da vida? Ainda ontem eu era uma criança, mas, pensando bem, nunca fui. Aquilo que aconteceu, penso se algum dia parará de acontecer. Quando deito a cabeça no travesseiro, eu escorro e então, o presente não passa de uma ilusão, como eu. Mas justamente o passado é de natureza mais concreta, e quando colidimos, ele me atravessa e eu morro, como morri ainda ontem, e morrerei mais vezes amanhã.

    Para sonhar é preciso acreditar, e eu não sei bem se acredito. Se a fé move montanhas, o desastre as fez pó. Ontem mesmo, eu vi deuses pedindo dinheiro no sinal, e meros mortais irem ao inferno e voltarem com certa desenvoltura. Meu bem, eu vi colossos de bronze de 60 metros de altura fazerem as malas e irem embora para um lugar onde ninguém os visse, e uma mariposa virar um fóssil de 200 anos. Quando fecho os olhos, posso viajar no tempo, mas ninguém acredita em mim. Mais cedo faz sete meses, e eu tinha 10 anos faz 20 minutos. O que me garante que você não vai embora?

    Ou só quero deixar minha marca no mundo, antes que as marcas que o mundo fez em mim me transformem em algo que não sou, mas eu sinto minúscula. Desculpa se tenho pressa, mas é que eu me sinto na sobrevida. Um grão de poeira é gigante como o sol, e cada minuto é um milagre. Eu te amo, mas amar é por demais real para alguém translucido. Eu não tenho toda a sua fé no tempo e nas coisas. Eu estou morrendo de medo que o mundo acabe. Ou que a gente acabe. Ou que eu acabe. Ou que o sol acabe. Ou que o sonho acabe. Tudo dá no mesmo.  A morte apressa a vida. O absurdo faz duvidar o óbvio, e a dor acentua a minha urgência por você. 

    Meu medo é que você nunca entenda. Ou que entenda tarde demais. 

    
Sub-Versivo, 22 de maio de 2023

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