Confissão de um cão



"O amor é o estado no qual os homens 
têm mais probabilidades de ver
 as coisas tal como elas não são."
Friedrich Nietzsche 

Dócil:

Não sei ferir, pois a culpa me consome assim que boto os pés pra fora de casa pelo simples crime de estar respirando, não sou capaz de feri-lo sem notar, por que minha mente toma nota de cada passo em falso, procurando um deslize, um motivo para escarnecer de mim, sei, sou cruel comigo, e me dizer pra ser mais gentil também é, de certa forma, cruel. Nunca o deixarei, nunca gritarei com você, nunca vou desgostar de algo em você, e se o fizer, guardarei só pra mim, para que nunca duvide da minha devoção. Serei fiel como um bom cachorro.

E, tal qual um cachorro
Se um dia você se for
Terá que me atirar pedras pra que eu compreenda
Que não me ama mais

Querido, eu sou uma fera sangrenta em todos os aspectos da minha breve existência, entretanto, quando olho pra você, de baixo pra cima, minha firmeza some e eu espero os ossos do seu almoço. Eu aninho a cabeça no seu peito, farejo seu suor para memorizar seu cheiro, faço festa pra você sempre que chega e uivo em ganidos sempre que se vai. Como um cão carente, eu preciso de seu afeto, do seu toque se desenhando por meu pelo endurecido pela vida. Você pode por a mão entre os meus dentes, é seguro, faça o que quiser, não o morderei. 

    Quando você contar seu trocado magro e ver que não tem grana pra tudo aquilo de que preciso, irei compreender. Se um dia você me prender numa coleira e me colocar na traseira de um carro, vou esperar docilmente que me leve onde desejar. Vou me aquietar mesmo sabendo que estamos indo muito longe, deixando as rodovias principais. Está tudo bem enquanto tivermos um ao outro, e o cão é o melhor amigo do homem. Quando você me amarrar numa barra de ferro na beira de um lugar desconhecido, eu vou entender, você só quer o melhor pra mim, você não consegue cuidar de mim, mas alguém vai. 


Decaído:

    Os dias passaram, e como um cão, não sou tão bela, exposta as intempéries da vida. Ai, senti sua falta todos os duas da minha vida. Quando meus pelos ficaram desgrenhados e mal cheirosos, eu lembrei de quando você os escovava e coçava minhas orelhas. Quando eles começaram a cair, tive vergonha, pois senti que não parecia mais com o cão que você um dia amou. No inicio, eu tentava afastar as moscas, o ruido delas era insuportável, elas nunca me atacaram quando eu tinha você, mas por fim, fui vencido. Tive vaga consciência de que as moscas moravam no meu corpo, mas elas eram muitas, e eu me acostumei.  Eu não sentia mais o meu rabo, nem mesmo as larvas, mas quem precisa de um rabo se não há nenhum motivo pra abaná-lo? 

Quando me chutaram, não senti.
Quando gritaram, não ouvi. 
Quando pisaram 
apedrejaram
cuspiram
escarraram 
Não me importei pois não era eu
Sem você,
Ali.

Só quando a corda com a qual você me condenara rompeu de velha
Só quando não tinha mais nada pra perder
Foi quando senti
Que você não voltaria
Que era levantar e lutar
Ou morrer enfim. 

Algo dentro de mim morreu
E só então, eu aprendi.
Ninguém deveria amar ninguém assim.

Sobrevivente:

Agora eu vago, errante, nos becos e vielas, distante do que um dia chamei de casa, e completamente avesso a o que um dia chamei de amor. Não graças a você, meu pelos cresceram, o cotoco do meu rabo cicatrizou, agora eu tenho força suficiente pra não deixar que as moscas venham. 

Seria por demais melancólico dizer que eu sinto falta da sensação de você? A rua é dura, os dias são longos, e as noites duram anos. Aqui, é matar ou morrer, lutar o correr, enfrentar ou sofrer. Há outros cães na cidade, todos eles com histórias piores que a minha, o gosto do mundo nunca foi tão amargo. Mas eu sou um cão, e é assim que cães levam a vida, com cinismo. 

Essa é quem eu sou de verdade? A resposta é sim.
Você me amaria agora? Nós dois sabemos que não.

Rasgo o saco de lixo na sarjeta, consciente de que essa é a melhor vida que algum dia terei. 

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