Mais Lobo que Homem

   


"When the full Moon bathes the meadow 
in its bright and silky dress
Why do I feel depressed, my love?"
Werewolf's eyes - birch book



    Você não tem ideia do quanto foi cruel, porque era lua cheia, e você era mais lobo que homem.

    Você foi o meu herói, meu cavaleiro da tabula redonda. Eu nasci depois do felizes pra sempre, todas as batalhas haviam sido travada, e você tinha vencido. Você era algo melhor do que o mocinho, você era o anti herói, o mercenário de bom coração, um antagonista com um passado difícil. Você nunca foi um príncipe, um comerciante bondoso, nem soube manejar uma espada ou cortejar uma dama. Você era o ogro solitário, a pária. E eu era sua filhinha monstruosa, sua aberração preferida. Sempre foi eu e você, pai. Havia algo de errado com nós, mas você me ensinou que não havia espaço pra gente no conto de fadas deles, então nós escreveríamos o nosso. Pai, se as cortinas tivessem se fechado nesse exato momento, choveriam aplausos e rosas. Mas na vida, não há cortinas, a história acaba individualmente, sem aviso prévio.

    Então éramos eu, você, e a Dríade. Dríades são ninfas das árvores, criaturas fortes, e ao mesmo tempo, sensíveis. Eu era criança, pai, por isso não entendi, quando os ataques começaram. Eu achava que era culpa dela. Mas foi aí que eu descobri: você não era mais o ogro bonzinho, sofrendo preconceito da aldeia medíocre. Você era um vampiro, a fauna estava sofrendo, e uma dríade iria até o fim pra salvar a floresta. Quando os pássaros começaram a cair do céu, e o gado apareceu morto, a Dríade se foi, levando a primavera, e aí ficamos só eu e você. Eu deveria ser seguido as flores, mas há algo magnético sobre vampiros, caso contrário, eles nunca chegariam perto o suficiente pra tirar sangue. Afinal, você ainda era meu anti herói, e a suas falhas não eram só previsíveis, como perdoáveis. Ainda era tempo de escrever uma história, nem que fosse uma tragédia.

    Mas pai, você mudou. Seus olhos ficaram maiores, você suava, seus pelos cresceram, não comia, nem dormia. Parecia sobre humano. De dia, era quase como antigamente. Mas a lua nascia no oceano, e então, você desaparecia, voltando apenas do dia seguinte, cansado da metamorfose. Ao menos no princípio. Depois, até de dia os sinais eram claros, e de noite, você era inteiro um lobo. Lobisomem em tempo integral, e por mais que eu procurasse nos seus olhos insanos, um sinal de humanidade, só havia instinto. Então, como um cachorro insano, eu queria, meu deus, queria que você fosse sacrificado, linchado pela turba revolta da vila. Queria que morresse em uma dia de lua nova, pra que pudesse me lembrar do como você era, pelo menos no túmulo. Mas todos os dias eram lua cheia, então, cansada de esperar, eu mesma te matei.

    Isso, eu te matei, havia sangue, eu chorei, mas pelo menos, pude respirar. Um crime passional e violento, te esquartejei e te enterrei nos fundos da minha mente, tentando remontar nossas memórias boas, mais ou menos. O lobo que você era nunca mais ia macular o homem que um dia você foi. Não havia espaço pra você no conto de fadas, que agora era apenas meu. Eu, que era uma criança, um quimera com cabeça de leão, chifres de cabra, rabo de peixe e couro de crocodilo, era agora um dragão jovem, machucando todo mundo pra proteger o tesouro. Eu o dragão, não liguei se isso fazia de mim uma vilã, a minha couraça era grossa, meu fogo era quente, e o tesouro que eu guardava eram o manuscrito do nosso conto de fadas, mas isso era segredo, todos ambicionam as propriedade medicinais de um coração de dragão, por isso agia como se não tivesse um. 

    Mas você voltou, na forma de um morto-vivo. Você saiu da terra nos fundos da minha mente, e eu te odiei e me odiei como só um dragão sabe odiar. Você, caindo aos pedaços, era bizarro. Sentia seu fedor de longe, cheiro de carne podre. Você montou uma vida, jogou fora os livros de fábulas e começou uma prosa descritiva. Casou-se com uma humana, vivendo numa vila de humanos, emprego humano. Eu também me misturei entre os humanos, parei de cuspir fogo e escondi a cauda. Pai, você enganou a todos, enganou a si mesmo, mas não a mim. Você passou anos a sete palmos do chão, e os sinais estavam ali pra quem quisesse ver. Sentados na mesa de jantar, eu lembrava do seu sangue nas minhas mãos, me sentia culpada por ter feito aquilo, a minha culpa neutralizou a sua culpa e nós continuamos.

    Os dragões, é sabido, trocam de pele, tal qual as cobras. Um dia, eu sai de mim mesma na forma de uma bruxa. Estava mais esbelta, minha pele melhorou, e cortei os cabelos e de repente, tinha uma vantagem. Porque as bruxas é que fazem o conto de fadas acontecer. Eu poderia até dizer que essa coisa de fantasia acabou, que é hora de crescer, mas a magia está dentro de mim, e eu não preciso ser a vilã só porque você tem uma bússola moral meio trincada. Era hora, de finalmente ser a protagonista da minha história, e, talvez, você pudesse seu meu conselheiro real.

    Mas houve uma tempestade, com raios e trovões e terremotos e calamidades, e as nuvens se dissiparam relevando um imensa lua cheia. E eu olhei pra você, e tudo que vi o lobo. Uma imensa fera desordenada, com barba por fazer, olhar ébrio e perdido. Pior pai, eu vi o lobo devorando você. 

    Pai, que bom que eu não sou mais uma quimera, pois se não eu não saberia quem sou e tudo que eu teria pra ser minha referência seria você. Pai, que bom que não sou mais um dragão, porque se não é botaria fogo no mundo, em mim e em você, pra ninguém mais ter que sofrer. Pai, o lobo mora dentro de você e os ciclos da lua são relativamente uniformes. Eu te amo, você não é o vilão, você não é o herói, você não merece ser endeusado na sua complexidade. Você é só um homem que é um lobo que é um homem.


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