Terça - feira


TERÇA-FEIRA


"E eu nem sei por que eu faço café
Já é amargo o sabor de te amar
De gole em gole
Eu vou enjoando
Vendo o lado vazio do sofá
Besteira, já cansei de esperar
De xícara em xícara
Eu vou me afogar
No café"

~ O lado vazio do sofá - Rodrigo Alarcon


Eu estava cansado. Sendo honesto, pareci implodir dentro daquele exaustivo paradoxo sem fim. Já fazia um ano que não se passara nem um dia. Acompanhe-me e verá.

Quando acordei, naquela terça feira nebulosa e úmida, parecia se tratar de um dia normal, talvez até mesmo excepcionalmente maçante. Foi tão mesquinho e insignificante, tão ausente de brilho, que quando acordei no dia seguinte, quarta feira, e descobri ser terça novamente, tomei a primeira experiência por um sonho. Era um sonho tolo de um desocupado, por isso cumpri meu dever e segui minha rotina. Foi preciso acordar pela quarta vez no mesmo dia, foi preciso ter consciência de prever com precisão todos os acontecimentos que me ocorriam (desde o trilho de formigas no açúcar derramado, até a garoa fina às 3 e 45 da tarde) que eu então me senti naqueles filmes de suspense genéricos, todos com a mesma base vulgar: um homem que é condenado a viver sempre o mesmo dia. Cogitei, lá pelo 7 tempo, estar sonhando um sonho muito, mas muito longo, uma peça de mau gosto pregada a mim mesmo pelo meu cérebro. Uma hora eu iria acordar. Mas a questão é: seria ainda outra terça feira? 

Comecei a marcar na mente, tanto quanto pude, as passagens dos dias de um dia só. Seguia lamentando ter estagnado em um dia tão trivial, parco de significado. Tomava café, e morando sozinho, não havia muito com quem conversar. Regava minhas plantas, ainda que isso tivesse pouca importância, pois não parecia justo abandoná-las à seca. Lia o jornal todas as manhãs, esperando encontrar algum mínimo detalhe novo, ao menos um indício de estar talvez sonhando, mas lá pelo dia 55, deixei-o de lado.  Trabalhava de casa, como colunista! Mas é difícil escrever quando se tornam escassos os estímulos externos. Comia sempre ovo frito pois nunca soube cozinhar.

Morava no apartamento 1304, mas nada, nem mesmo a ciência empírica de entender o que me acontecia, me motivava a sair. Até mesmo a chave eu havia perdido. As cortinas ficavam fechadas, e o ambiente, uma bagunça. Os dias eram todos terça, mas farias diferença de fosse quarta, ou sexta? Eu não saberia dizer. Cada terça parecia pior que a ultima, acima de tudo porque eram eternamente iguais. Pensamentos como a morte eram descartados pelo único motivo de temer acordar em outra terça feira cósmica, e ser tudo em vão. Olhava no espelho e constatava: eu era a terça feira: um nada, incômodo e insignificante. 

Quando marcaram 365 terças, ou tão próximo disso que já não fazia diferença, eu juntei toda a disposição e esperança que tinha, e, tendo perdido a chave do meu próprio apartamento, arrombei-o por dentro com um clipes de papel. Abri timidamente a porta, e encontrei o corredor exatamente tal qual o deixara, da ultima vez que saíra para comprar pão só por fazer algo, 42 terças feiras atrás. No súbito impulso vital e determinação restante, bati três vezes na porta no vizinho, 1305, de frente para a minha. Quando cogitava voltar para a minha cama quentinha e engolir a próxima terça com louvor, o rapaz de 20 e poucos anos atendeu a porta. Seu aspecto era quase tão deplorável como o meu, mas me sorriu gentilmente, a face da empatia. 

- Eu sei que vai parecer loucura - comecei, sem poder voltar a trás - mas faz um ano que é terça feira, e eu precisava ver um rosto que não fosse terça, digo, que não fosse eu.

- Tudo bem amigo. Acabei de passar café. Ontem foi terça pra mim também.

Com os olhos marejados, eu perguntei:

- e hoje? Que dia é hoje?

- Hoje é quarta cara. É como dizem: um dia de cada vez.



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