Casulo




"É que por enquanto,
 a metamorfose de mim pra mim mesma
 não faz nenhum sentido"
- Clarice Lispector

    Não me lembro de ter crescido. Não lembro de dar o primeiro trago. Não lembro da primeira vez que fiquei bêbada. Não lembro quando eu parei de sorrir pra fotos e não lembro de quando raspei o cabelo. Não lembro de quando saí de casa pra comprar pão sozinha pela primeira vez. Talvez seja por isso que eu não me reconheço em nenhuma foto de quando eu era criança. Me pergunto se as borboletas lá no céu sabem que já foram vermes rastejantes, colados no chão. Me pergunto se o casulo foi como uma espécie de morte, ou se elas se lembram; e se lembrarem: será que dói?

    Não gosto de pensar na criança que eu fui. Me faz desejar coisas impossíveis e querer reunir cinzas ao vento e construir alguma coisa com elas. Me dá raiva. Quando eu estava no casulo, achei que fosse morrer. Acho que é natural. O mundo acabava todos os dias, mas o sol sempre insistia em nascer no dia seguinte. Um dia, eu olhei no espelho eu não me vi. Eu era bonita, e vazia, borboleta. Ao meu redor, as pessoas iam e vinham, eu morava em outra cidade, com outra família, e nada me remetia e quando eu era criança. E aí, pensei que, por implicações práticas, talvez as borboletas simplesmente não acreditem que um dia foram lagartas.

    As pessoas me perguntam o que tem de confortável na dor. É simples: a dor me lembrava do casulo do qual eu não queria sair. E então eu acordava todos os dias, e eu não lembrava quem eu era, e nem sabia se ia sequer "ser" no dia seguinte, mas eu lembrava da minha carne derretendo no escuro da crisálida, e isso tinha que significar que eu não fui sempre assim. A dor era uma ideia, uma filosofia de via. A dor que ninguém entendia, de ganhar o céu e perder o chão. 

    Quando as borboletas começam a perder a luta contra o vento, elas morrem. O complexo padrão de cores não significa nada. A metamorfose não significa nada. A lagarta não significa nada. Não há nada que signifique alguma coisa. Não tenho certeza se, quando as borboletas caem do céu com a asa rasgada, elas sabem que estão morrendo, mas eu sabia. E quando finalmente descobri a melhor parte de ser um inseto (a efemeridade), o mundo vira pra mim, e diz: "Você não é uma borboleta. Você não se alimenta de lágrimas e sangue. Você não tem 7 dias de vida. Você não está morrendo. Você nem sequer está doente."

    Pergunto então porque tem um monte de pedaços da minha vida que eu não me lembro. As pessoas olham pra mim e veem uma borboleta e tudo que eu vejo se resume a um verme. E pergunto, já com raiva, porque que toda vez que eu fecho os olhos e deito a cabeça no travesseiro, eu estou de volta no casulo, e dói. Pergunto o que mais eu seria, se não, uma derradeira borboleta.

E aí, o mundo sopra uma leve brisa no meu rosto, que diz: 

"Você é um ser humano"

Eu eu acho que comecei a entender.

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