Carta Aberta (Aos Derradeiros)




"Dois pássaros em um fio
Um diz: Venha
Mas o outro está cansado
(Eu sinto muito)"
~ Two Birds - Regina Spektor

    
    Hoje meu melhor amigo me disse, categoricamente: "A vida é uma merda". Foi o que uma das estranhas que um dia eu amei profundamente disse no telefone depois de deixar o gás vazar pela casa por 40 minutos e brincar com o isqueiro nas mãos, mas a mãe dela chegou cedo do trabalho. Tenho quase certeza de que foi o que a minha outra amiga pensou, mas não posso saber, porque ela decidiu não pegar o telefone, e aí quando a mãe dela chegou, era tarde. Eu já disse isso também, pra mim mesma, pros outros, e era cedo, e também tarde.  Noticia velha, essa de que a vida é uma merda. Velha e ardilosa.

    Quando eu era criança, não tinha medo do bicho papão, tinha medo do senso comum, de não pensar com a minha própria cabeça. Nunca gostei de igreja, banco, político que fala demais, comida industrializada, gente simpática e cachorro geneticamente modificado. Eu queria criar ideias, mas eu ainda estava aprendendo a somar e dividir. Nessa época, fui induzida ao erro e comecei a acreditar que a vida era uma merda. Foi preciso muito tempo pra entender que o suicídio não é uma ideia revolucionária, e que é muito "de vanguarda" assar biscoitos caseiros num domingo chuvoso. 

    Então, hoje... meu melhor amigo me disse que a vida é uma merda. Eu quis explicar pra ele a vida nem sabe que ele existe. Que a vida é gigante, tipo o couro todo macucado de um elefante que anda toda a África várias vezes durante a sua existência. Grande tipo o oceano quebrando contras as rochas antes da tempestade. Grande tipo o buraco negro que um dia vai engolir a gente. Grande tipo uma cadela que come os filhos natimortos pra poder ter mais força pra alimentar os que sobreviveram. Grande tipo o primeiro sorriso genuíno que eu dei depois da minha última tentativa contra a minha própria vida.

    Mas aí não conta. Ele tem que descobrir isso sozinho, e o que mais dói, é que talvez ele nem descubra. Talvez a mãe dele chegue tarde. Talvez o álcool seja mais barato do que uma refeição de verdade. Talvez a faca esteja afiada demais, talvez na caixa de remédio venha 4 cartelas, em vez de uma. Não sei, não é culpa minha. Se amanhã ele, ou você, ou alguém, não estiver mais aqui, eu vou sorrir por dois. Eu vou assar o dobro de biscoitos, e pintar duas telas, em vez de uma. 

    E eu não vou me sentir mal por ter sobrevivido.

      

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